Intolerâncias alimentares. E se fosse perimenopausa?

Inchaço abdominal extremo: intolerâncias ou perimenopausa?

Cada vez mais recebo em consulta, mulheres com relatórios de dezenas de páginas sobre supostas intolerâncias alimentares detectadas por máquinas com tecnologias improváveis, cujos vereditos infernizam a vida de quem os recebe. A agravante é o facto que frequentemente não é explicada a diferença entre alergia e intolerância, e isto leva a uma exacerbação da preocupação em evitar listas infindáveis de alimentos. Ora, muitas vezes a procura de uma intolerância alimentar nasce dum conjunto de problemas digestivos (nomeadamente inchaço e distensão abdominal) que na verdade não dependem de intolerâncias mas sim situações hormonais, como é o caso da perimenopausa. 


As mulheres na casa dos 40 não se identificam com o conceito de perimenopausa por causa do tabú e da ideia de que a menopausa é fenómeno repentino -que acontece um dia de repente aos 50 e tal -, e querem afastar o mais possível esse terrível pensamento. No entanto, esses abdómenes inchados sem causa aparente…são precisamente um dos sinais possíveis de perimenopausa! Não é com estrambólicos testes de supostas intolerâncias que vamos resolver o problema!

Mas vamos começar pelo princípio: a diferença entre alergia e intolerância. 

Tem a paciência de ler tudo com calma, porque há conceitos importantes a esclarecer antes de falar especificamente do assunto “barriga inchada da perimenopausa”.


As alergias alimentares são devidas a uma resposta imunológica a um antigénio alimentar que culmina num conjunto característico de sintomas, que vão desde leves a graves (choque anafilático é grave).


No contexto alimentar, as "alergias" sugerem tradicionalmente uma hipersensibilidade de tipo imediato (tipo 1) envolvendo anticorpos imunoglobulina E (IgE) específicos do antigénio e libertação de histamina (entre outros mediadores). Os sinais/sintomas de alergia alimentar de tipo 1 começam geralmente dentro de minutos a 1 hora após a ingestão de alimentos e podem incluir urticária; comichão; inchaço dos lábios ou da língua; dificuldade em engolir; aperto da garganta; aperto do peito; dificuldade em respirar; pieira; e desconforto abdominal abrupto que pode estar associado a náuseas, vómitos, e/ou diarreia.


Para além das alergias alimentares mediadas por IgE imediatas, há reações alérgicas alimentares mediadas por células T e podem apresentar sintomas gastrointestinais mais tardios e geralmente crónicos de vómitos, diarreia, sangue nas fezes, fraco crescimento e/ou perda de peso, esofagite, entre outras.

Qual é então a diferença entre alergias e intolerâncias alimentares?

A "intolerância alimentar" descreve uma grande variedade de queixas provocadas por alimentos que não envolvem o sistema imunitário.


Os sintomas típicos são em grande parte gastrointestinais e podem incluir gases, distensão abdominal, inchaço, náuseas, e/ou alterações na consistência das fezes. A intolerância à lactose é um exemplo clássico.

Portanto, nas intolerâncias, os sintomas  são menos específicos, mais difusos, e o mecanismo que os causa é muitas vezes pouco claro, embora pareça que a exposição a alimentos específicos e/ou químicos ou aditivos alimentares possa gerar queixas variadas. 

Outra diferença é que as intolerâncias e sensibilidades alimentares são mais comuns do que as alergias alimentares.

E o glúten?

Em muitos casos, o glúten é suspeito como o provável culpado de intolerâncias. Em tais casos é essencial ter primeiro uma avaliação adequada, com de testes laboratoriais específicos, da doença celíaca (atenção, a doença celíaca não é uma intolerância nem uma alergia). E isto deve ser feito antes de eliminar o glúten da dieta, porque de outra forma será muito mais difícil fazer uma avaliação correcta. Para além disso, não é de subestimar a hipótese que quando a eliminação do glúten leva a melhorias gerais do estado de saúde, este efeito não se deve ao glúten em si, mas a outras mudanças associadas (eliminação de produtos de pastelaria, aumento de consumo de cereais em grão, outros cuidados alimentares adoptados). E não esqueçamos o efeito “nocebo” (o contrário do placebo) que foi observado em estudos clínico sobre o glúten, em que os participantes que recebiam uma dieta sem glúten mas aos quais era dito que o estavam a consumir, apresentavam de repente queixas que não tinham quando sabiam não estar a consumi-lo.

Portanto, apesar de existir realmente uma “sensibilidade não celíaca ao glúten”, ela é menos frequente do que se pensa.



Mesmo em ausência de doença celíaca ou sensibilidade não celíaca ao glúten, muitos profissionais recomendam a exclusão do glúten da dieta em caso de doenças como a tiroidite de Hashimoto e da endometriose. Isso com base nalgumas evidência que apontam para o papel que o glúten pode desempenhar neste tipo de quadros auto-imunes e inflamatórios. O glúten costuma também ser eliminado numa fase preliminar da abordagem à síndrome do colon irritável, junto com uma dieta “a baixo conteúdo de FODMAPs” sobre o qual irei aprofundar noutro artigo.

No entanto, é importante frisar que a eliminação do glúten não é a cura destas condições, nem o glúten a causa delas. 

Muitas mulheres perguntam-me se “o glúten faz mal”, fora das situações que acabei de mencionar. A resposta é: não sei. Pessoalmente desconfio de quem afirma saber e declara peremptoriamente que o glúten é o culpado de todo mal, ou é “inflamatório” em si, ou causa isto ou aquilo. Tudo isso são teorias, frequentemente associadas à teoria da suposta toxicidade de todos os cereais. Eu não sou uma fanática seguidora da “ciência” (que tanto nos esfregaram na cara nos últimos 3 anos a torto e a direito). Não acredito que tenhamos todos que ficar à espera que a ciência nos confirme se um alimento nos cai mal ou não. Se empiricamente chegarmos à conclusão que os alimentos com glúten nos provocam mal estar, força com a eliminação. Agora, em primeiro lugar, não é fácil excluir o glúten e perceber se o que nos faz bem é eliminar os pasteis de natas e as sandes de queijo por ser o que são, ou porque contêm glúten. Por outro lado, se comer ou não alimentos com glúten, não parece fazer grande diferença, não sou partidária de o eliminar porque sim. Há muitas desvantagens não só de ordem prática mas também nutricionais em fazer esta escolha. Mas digo claramente que esta é apenas a minha opinião, tal como são opiniões as teorias do glúten bicho papão. 

Que tipo de testes ou provas diagnósticas podemos fazer?


Quando um diagnóstico de alergia ou intolerância alimentar é incerto, é útil fazer uma série de perguntas pontuais para ganhar clareza, como por exemplo: qual foi o momento da reacção à ingestão do alimentos X ou Y?

Os sintomas relatados eram consistentes com um mecanismo imunitário? Por exemplo, dores de cabeça, dores nas articulações e nevoeiro mental não são sintomas comuns de alergia alimentar, enquanto que a comichão na boca e garganta, urticária e pieira, são.


Enfim, se suspeitas ter realmente uma alergia, consulta um(a) alergologista. Ele ou ela sabe fazer os testes correctos para identificar uma real alergia alimentar, e fazer uma história clínica exacta para permitir uma interpretação adequada dos testes.


Para os testes de intolerâncias, a história é outra.

Circula muito a ideia que as intolerâncias alimentares podem ser medidas por métodos científicos.

No entanto, muitos testes propostos para descobrir intolerâncias alimentares não são cientificamente válidos, apesar de nomes altissonantes e rocambolescas explicações do mecanismo de funcionamento.


O único teste cientificamente válido é o teste de intolerância à lactose: o teste de hidrogénio expirado. Durante o teste, a pessoa toma uma dose normalizada de lactose: a intervalos sucessivos, os gases exalados são analisados para detectar picos de hidrogénio, cuja presença indica fermentação intestinal de lactose não digerida.


O teste de  hidrogénio expirado também pode ser realizado para avaliar a não absorção de outros açúcares como a lactulose, xilose, frutose ou sorbitol. Estes testes podem tanto detectar dificuldades na absorção de açúcares específicos, como indicar a presença de contaminação bacteriana no intestino delgado. O modo de execução é semelhante ao do teste da lactose, com medição do hidrogénio presente na respiração exalada em intervalos de tempo definidos após o consumo de uma dose padrão do açúcar em teste. 

Todos os outros testes não têm validade!,. Algumas destas tecnologias não merecem sequer comentários. Mas há testes que são efetuados por laboratórios de análises oficiais. 

Se fizeste ou estás a pensar fazer algum destes testes, podes ver a bibliografia nas notas em baixo, e faço-te aqui um resumo-tradução da posição da Academia de Nutrição e Dietética sobre o assunto num artigo divulgativo: “estes testes procuram a presença de anticorpos IgG, não IgE. Não foi demonstrado que os anticorpos IgG identifiquem de forma fiável as alergias ou sensibilidades alimentares. A maioria das pessoas produz anticorpos IgG depois de comerem alimentos. Não são específicos da sensibilidade de uma pessoa, embora a exposição passada ou frequente a um alimento possa fazer com que estes níveis sejam mais elevados.(…)

As restrições alimentares sugeridas pelos resultados das análises IgG podem levar a evitar desnecessariamente alimentos saudáveis. Ou, podem levar indivíduos com alergias alimentares a incluir alimentos que lhes possam ser prejudiciais.

As organizações profissionais especializadas no tratamento de alergias alimentares, não recomendam a realização de testes de IgG”.


Também tenho uma história engraçada para te contar: uma emissora suíça-italiana contactou várias empresas que fazem testes de intolerância e enviou-lhes duas amostras de sangue. Estas duas amostras eram da mesma pessoa, mas foi dito às empresas que eram de duas pessoas diferentes. Os resultados foram hilariantes: não só cada empresa enviou resultados de intolerância diferentes e contraditórios, como também as intolerâncias foram muito diferentes entre as duas amostras da mesma pessoa!


ATENÇÃO: não quero absolutamente dizer que as intolerâncias não existem. Apenas alertar que até à data não existem testes de intolerância que dêem resultados fiáveis, sem ser os que já citei.

Então, como é que se descobre se existe uma qualquer intolerância alimentar? 

Só há uma maneira: a dieta de exclusão. Eliminar os alimentos ou categoria de alimentos que supostamente geram o desconforto do qual se sofre. Se não tens ideia do que possam ser, o conselho que te posso dar é que comeces a compilar um diário alimentar em casa, para que saibas se existe uma correlação entre as tuas queixas e a ingestão de um ou mais alimentos.

Para terminar, se és mulher e estás na casa dos 40 ou 50 anos, é possível ou até provável que seja a perimenopausa, da qual te falava no início do artigo, a ser um fator importante na génese do teu mal-estar abdominal. Na verdade não sabemos exactamente porque é que muitas mulheres a passar pela transição, se queixam de inchaço e desconforto abdominal . Uma das teorias é que, por causa da menor qualidade dos folículos, sentimos menos o efeito calmante e anti-flatulento duma progesterona saudável, já que esta hormona é produzida pelo corpo lúteo (o “casulo” do folículo) após a ovulação. Isto é, se houver ovulação. Na perimenopausa é frequente “menstruar” (leia-se, sangrar) sem ter ovulado. Neste caso, o sangramento acontece sem que tenha circulado progesterona alguma nos dias anteriores. Por outro lado, é óbvio que os estrogénios também jogam um papel importante. Como expliquei no meu ebook gratuito (que podes descarregar aqui), no nosso intestino, dentro da microbiota, que são as bactérias que nos habitam, existe um núcleo de bactérias especiais conhecidas como estroboloma, cuja função é regular os níveis de estrogénio. Quando a nossa microbiota está desequilibrada, estas bactérias podem não conseguem eliminar correctamente o estrogénio. Outro factor que impede uma correta excreção das hormonas é o fígado, frequentemente sobrecarregado por medicamentos (incluidos a pílula e o DIU!) e alimentação inadequada.

O excesso de estrogénio em circulação é uma situação frequente em perimenopausa. A hormona folículo estimulante (FSH) tende a subir nos anos que precedem a menopausa. Isso porque esta hormona é a que dialoga com os ovários para produzirem estrogénios. Agora, com a idade os ovários tornam-se cada vez menos responsivos e a FSH tem que “falar mais alto”, aumentando a intensidade do estímulo. E eis que às vezes, de repente, os ovários respondem mais aos estímulos da FSH e acontecem verdadeiros picos de estrogénios. Que por outro lado não conseguem provocar a ovulação, ou em qualquer caso nutrem folículos com pouca qualidade, com consequente falta ou pouca produção de progesterona. Portanto, somamos picos de estrogénios e incapacidade de os eliminar eficazmente pelas vias de excreção, e temos a tempestade perfeita. Sabes aquela sensação de inquietação, inchaço, altibaixos de humor, eventualmente mamas inchadas? Parecido ao pré-menstrual, mas sem padrão cíclico fixo? Isso. 

Portanto, voltando ao assunto que nos preocupa, para tratar o inchaço abdominal da perimenopausa, é fundamental tratar primeiro aspectos básicos como: obstipação, dieta inadequada, sedentariedade, stress e disrupção da microbiota intestinal.

Sendo tudo isso necessariamente dependente de aspectos do estilo de vida individual e impossível de resumir aqui, partilho em qualquer caso umas dicas que podem funcionar para a maioria de nós:


1 Fazer refeições mais pequenas e mastigar bem.

2 Não fazer jejuns longos a não ser durante a noite.

3 Encontrar o equilíbrio no que toca à fibra: por vezes nas dietas de base vegetal consumimos imensa, e isso é desejável, mas temos que a modular para não exagerar e provocar distensão abdominal.

4 Tomar 400 a 600 mg de magnésio citrato (se há tendência para obstipação) ou bisglicinato à noite, depois do jantar.

5 Tomar infusões de plantas digestivas como funcho, camomila, erva cidreira, anis, coentros e hortelã-pimenta. Não compres aqueles chás em saquinhos! Compra as plantas secas (se as tiveres frescas na tua varanda ou quintal, melhor ainda!) e mistura-as num grande frasco. A dose é uma colher de sopa da mistura por cada meio litro de água. Podes tomar 2-3 chávenas por dia, respeitando a regra de deitar a água a ferver por cima das plantas, tapar e deixar repousar uns 15 minutos antes de coar. 

6 Triphala, uma mistura de 3 plantas medicinais ayurvédicas (Phyllanthus emblica, Terminalia bellirica,Terminalia chebula), pode melhorar obstipação, dor abdominal e flatulência.

7 Exercício físico moderado: um equilíbrio difícil. Vejo mulheres totalmente sedentárias que não se conseguem organizar sequer para uma caminhada ao fim de semana, e outras hiperdisciplinadas que fritam tiróide e supra-renais em treinos diários extenuantes que não as deixam mais magras ou saudáveis em absoluto. Nem uma coisa nem outra. Exercício diário, prazeroso, equilibrado com o que o nosso corpo pode fazer.

8 Estar atenta ao momento do dia em que surge o desconforto, e aliviar, dentro do possível, a pressão da roupa, deitar, tomar algo quente e relaxar. Tentar perceber se há gatilhos específicos a nível não só alimentar mas também emocionais.

Resumindo:

-Embora as intolerâncias alimentares existam, não é correndo a um laboratório de análises que vais encontrar o eventual alimento responsável.

-Sim, aos 40 e tal podes serenamente assumir que estás na perimenopausa e é possível que seja essa a causa do teu desconforto abdominal. Tira da cabeça aquela imagem da tua avó a abanar o leque na cara. 

Não significa que não possas ainda engravidar, nem que vais deixar de menstruar amanhã. A perimenopausa dura anos. 

Aproveita-os todos. 

E os a seguir.

Bibliografia

 Gibson PR, Skodje GI, Lundin KE. Non-coeliac gluten sensitivity. J Gastroenterol Hepatol. 2017 Mar;32 Suppl 1:86-89. doi: 10.1111/jgh.13705. PMID: 28244667.

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 Myszkowska D, Zapała B, Bulanda M, Czarnobilska E. Non-IgE Mediated Hypersensitivity to Food Products or Food Intolerance-Problems of Appropriate Diagnostics. Medicina (Kaunas). 2021 Nov 14;57(11):1245. doi: 10.3390/medicina57111245. PMID: 34833463; PMCID: PMC8625578.

 https://www.eatright.org/health/allergies-and-intolerances/food-intolerances-and-sensitivities/are-food-sensitivity-tests-accurate#:~:text=Because%20IgG%20blood%20tests%20have,to%20unnecessarily%20avoid%20healthy%20foods.

 https://www.rsi.ch/la1/programmi/informazione/patti-chiari/Intolleranze-alimentari-Duplicazione-della-chiave-anti-ladro-1521.html

 Mehta, Raaj S. MD; Staller, Kyle MD, MPH. Menopausal transition and bowel disturbances: a step in the right direction. Menopause: June 2018 - Volume 25 - Issue 6 - p 589-590

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