Quando a fuga nos vem acordar

Dormir nem sempre é fácil para muitas de nós. Ultimamente recebo muitos pedidos de S.O.S. sobre este tema. 

O relato das mulheres é bastante uniforme: à noite, até adormecem rapidamente (ultra cansadas) mas acordam às 2 ou 3 de manhã e não tem como voltar a dormir, ou adormecem 5 minutos antes do despertador. 

Sim, vou falar-te de plantas medicinais e de higiene do sono. Mas não agora. Antes vou te contar uma história pessoal, aliás duas, que trazem algo que ultrapassa o decálogo de “dicas” ou “soluções”.

No fim de semana passado participei como oradora no primeiro Congresso português de Alimentação Vegetariana, organizado pela Associação Vegetariana Portuguesa. 

Fui falar de Nutrição de Base Vegetal na fase da amamentação, e na introdução da alimentação complementar do bebé. À noite. fui dormir exausta (tinha passado os dois dias anteriores a preparar a apresentação) mas acordei a meio da noite com o meu cérebro a fazer o balanço do dia anterior. A notar todos os erros e as imperfeições da apresentação (“aquela referencia bibliográfica faltou, aquela outra estava mal citada, passei do tempo previsto”, etc.) e quando acabou com a apresentação foi a vez de massacrar a minha pessoa (“sempre tão histriónica, tão exagerada a falar, quando é que vou aprender a ser mais discreta? E não podia ter escolhido outra cor de roupa? E precisava mesmo calçar aqueles Dr Martens roxos, envernizados??”). Aquela sensação de querer ser tragada pelos lençóis, de vergonha essencial da minha pessoa, não me é nova. Sempre que me exponho em público, na altura faço-o com uma perna às costas, sem problemas em falar daquilo que me apaixona, e só acuso o golpe mais tarde, quando todos os estímulos sociais -que, para uma introvertida disfarçada de extrovertida como eu, são sobrecargas brutais, - são elaborados no momento do descanso. Passei cerca de duas horas a dar umas quantas voltas na cama, a gemer de angústia. 

Depois lembrei-me de tentar uma coisa diferente. Aceitar. Aceitar tudo o que tinha feito. E aceitar como me sentia em relação a isso. Aceitar as sensações corporais me trazia aquela vergonha. Dar-lhes nomes: medo de ser inadequada, medo de ser vista, medo de não ser vista, medo de ser rejeitada, medo de não ser suficientemente boa no que faço, medo de não merecer. Aperto no estômago, tensão no pescoço e nas pernas, punhos apertados, olhos que não querem fechar, bexiga a querer fazer o enésimo xixi. Sustentar aquelas sensações físicas, sem as tentar deixar de sentir. Deixá-las aí, a ser o que eram. Nada que os dois anos de Experiência Somática não me tivessem já ensinado, mas tão fácil de esquecer quando são 3 da manha e só pensas, pensas, pensas…Comecei também a imaginar os meus pensamentos noturnos como monstros a dançar e a fazer o comboio como naquelas deprimentes festas de passagem de ano dos anos 80 com pseudo-samba à mistura, A, E, I, O, U, Y… (vocês tinham disso cá em Portugal? Se calhar o vosso equivalente é o Aperta o comboio…). Fiquei a olhar a dança do comboio de monstros, e a sentir o corpo invadido pelas sensações provocadas pelos pensamentos, aceitando-os todos, sem fazer resistência. Até que comecei a sentir um descanso físico bom. As sensações deixaram de ser tão dolorosas, e os pensamentos começaram a desvanecer. Adormeci.

Tenho voltado a fazer este exercício todas as vezes que os pensamentos voltam à carga, e isto me tem ajudado a navegar os desafios estressantes dos últimos dias. Não é passividade, não é aceitar tudo o que nos acontece sem fazer nada para melhorar. Mas mesmo nas situaçoes em que é preciso atuar, temos que o fazer desde um lugar de aceitação. Aceitação daquilo que É,  e daquilo que isso nos provoca a nível de sensações. 

Muitas vezes vamos precisar de fazer este processo acompanhadas por um terapeuta competente, porque nem todos estes lugares assustadores devem ser visitados se estamos sozinhas com uma carga traumática demasiado enorme para nós. Mas se vemos que essa ponte suspensa de cordas é relativamente acessível para nós, podemos atrever-nos a avançar, com abertura e curiosidade. E com carinho e compaixão por nós próprias. Inclusivamente quando sabemos que o que nos mantém acordadas é algo de que estamos a fugir.

Eu tenho um historial engraçado de mecanismos de fuga. Comecei a sofrer de insônias brutais aos 16 anos, quando mudei de casa e cidade contra a minha vontade. Saí da casa dos meus pais aos 19 anos, e fui viver com amigas. Tinha um estilo de vida longe de ser saudável: noitadas (diversão alternada a estudo intensivo), cigarros, ganzas, cantina universitária (com massa com molho de tomate como única opção vegetariana), horários loucos. E claro, as insônias ao rubro.

Um dia falsifiquei uma receita médica (aaah, os anos 90!!) e comprei 10 caixas duma benzodiazepina que já tinha experimentado, porque uma amiga minha a tinha roubado à mãe.

Adorava a sensação de sentir-me apagar os pensamentos, adorava poder descansar de mim própria e era suficientemente maluca para começar a tomar aquilo a torto e a direito para dormir. O medicamento era em gotas. Eu nem as contava, tomava doses generosíssimas que rapidamente se tornaram insuficientes, e foram aumentando cada vez mais. Até que um dia reparei que as minhas mãos tremiam. Precisava tomar durante o dia para não tremer! Fiquei assustada, mas tomei. Esse dia a nossa Faculdade estava ocupada (aaaah, os anos 90!!), e eu fui lá. Cheguei à hora da Assembleia geral de estudantes. Mal cheguei, alguém me passou uma cerveja e eu aceitei sem pensar. A minha única intervenção na Assembleia foi um vómito em jacto. Alguém me levou para casa, mas pedi para ficar sozinha. Deitei no lixo as (poucas) embalagens do medicamento que restavam, e preparei-me a passar a noite sem dormir, enrolada num cobertor, a tremer e chorar. As duas amigas que viviam comigo fizeram barreira à volta do assunto e espalharam a noticia de uma intoxicação alimentar, mas eu chorei sobretudo de vergonha. E como não tinha como me anestesiar, tive que aceitar. Aceitar o que era. Tive que aceitar cada minuto de todas as horas que fiquei sem dormir nas noites seguintes. Tive que aceitar a solidão que senti por ter demasiado vergonha para pedir ajuda. E o cansaço de fingir que estava tudo bem.

Desde então, sinto que vivi muitas outras “reencarnações”, às vezes fico a pensar “essa pessoa era mesmo eu??”.

Mas aprendi na minha pele que a minha tendência à fuga me podia praticamente matar.

Não te vou mentir: eu ainda, às vezes, acordo às 3 da manhã, como acabei de te contar. O sono é sempre o primeiro em dar sinal quando tenho alguma questão premente. Mas tenho em mim o registo de poder fazer algo que não seja fugir.

Sim, temos as plantas, às quais recorro e que costumo aconselhar: a Passiflora, magnífico ansiolítico. A Papoila da California, que ajuda a manter um sono mais prolongado. A Valeriana, se não és daquela pequena percentagem de pessoas que tem um efeito paradoxal e fica ainda mais insone com esta planta. O Lúpulo, especialmente indicado se além de insônias tens calores noturnos por causa da menopausa. A Lavanda, em infusão com outras plantas (salva, passiflora, erva cidreira…)  que é para o chá para não saber a sabonete; ou então em difusor de óleos essenciais, junto com a bergamota.

Aquele gesto de auto-cuidado, de levar a água ao lume e deitar nas plantas, e inalar o seu aroma confortante, de sentar com calma para o saborear, já é terapêutico em si.

E outro grande gesto de auto-cuidado é poupar os nossos olhos e o nosso cérebro do excesso de estímulos cognitivos, visuais e luminosos que representam as telas e os ecrãs da vida, carregados de tensão (noticias, violência real e fictícia) que permanece no nosso sistema nervoso para ser elaborada, e de luzes que confundem a glândula pineal, responsável pela produção de melatonina. É sempre boa ideia fazer esta filtragem mesmo durante o dia, mas é fundamental que seja feita ao fim do dia. Agora, com os dias a ficar mais curtos, pode ser uma ótima ideia, se estás em casa, relaxar com atividades que não envolvam audio-visuais. Ler, trabalhos manuais, cozinhar um bolo ou assar castanhas, criar coisas, conversar, banhos de banheira, música relaxante, e dar aos nossos sentidos o aconchego do tempo em que é mais fisiológico ficar em casa recolhidas. E baixar as luzes. E porque não mesmo ligar as velas (crianças e animais permitindo)?. Deixar os aparelhos fora do quarto de dormir. O quarto onde dormimos podia ser uma espécie de templo dedicado só ao descanso (e eventualmente à nossa vida sexual), com cores acolhedoras, cheiros bons (de novo, os difusores de óleos essenciais são…essenciais!), e plantas naturais para depurar o ar e nos trazer algo de natureza perto de nós (é mentira que não se deve dormir com plantas por causa do dióxido de carbono). Particularmente indicadas para quartos de dormir são a Espada de São Jorge, o Lírio da Paz, e a orquídea Phalenopsis, pelas suas capacidades de emitir oxigênio durante a noite e de purificar o ar de compostos voláteis, formaldeído, etc…mas podes escolher qualquer outra planta que gostes e que se adapte às condições de luz e temperatura do teu quarto. Inspira-te no movimento da Urban Jungle e verás a diferença! 

Lembra-te também que na altura da perimenopausa (o que pode ser qualquer idade a partir dos 35-40) é fisiológico passar por esta fase de sono mais complicado, o que nos leva para outro assunto que é: o que tem que ser mudado na minha vida? O que é que o meu corpo me quer dizer?

Que sensações me traz? O que acontece se as aceitar?…

Não é fácil. Se fosse fácil, não teríamos empurrado estas questões para uma arrecadação mental, não teríamos varrido a poeira debaixo do tapete, e não estaríamos agora com a porta da arrecadação arrombada pelo seu próprio conteúdo, e o vento a espalhar o pó acumulado.



Fica o desafio.

Com amor,

Antonella

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